quarta-feira, 21 de maio de 2014

A paisagem fantástica e a estrada fantasma

Saindo do Morro da Igreja, e com o horário avançando, comecei a achar que não valeria a pena retornar a Urubici, ir até São Joaquim e depois descer a Serra do Rio do Rastro, ia ficar muito tarde.

Só ia dar tempo de fazer uma ou outra, se não quisesse pernoitar por lá. Mas a descida pela Serra do Corvo Branco estava logo ali do lado...


Para quem não conhece, a Serra do Corvo Branco é conhecida como a "mais terrível" do Brasil... é uma alternativa paralela à Serra do Rio do Rastro, só que mais malvada... 
(nham nham!)


Imagem: http://jp-lugaresfantasticos.blogspot.com.br/2011/12/serra-do-corvo-branco-santa-catarina.html

Na bifurcação, hora de decidir. Parei na barraquinha de frutas para perguntar se a próxima cidade depois da Serra do Corvo Branco estava próxima.

— É Grão Pará. Uns 35 km até lá.


— E tem posto de gasolina e lugar para almoçar?


— Tem sim, tem tudo por lá.


— Ainda tenho uns 100 km de gasolina, então vou para lá mesmo, obrigado!


— Boa sorte! E que Deus te acompanhe na viagem!


Nesse instante deu um friozinho na espinha... sabe aquela sensação "Motel Bates, parece um bom lugar para passar a noite..."?

Eu devia ter interpretado melhor aquela expressão no olhar do vendedor, ela queria dizer "coitado, esse cara é doido"...


Então minha rota ficou assim:



Imagem: Google maps

Ainda matutando sobre aquela conversa e o frio na espinha, cheguei ao final do asfalto onde havia uma placa indicando Serra do Corvo Branco: 7,5 km

Eu já sabia que havia trechos sem asfalto, então calculei que deviam ser uns 20 km de estrada de terra entre o acesso, a serra e o planalto... Minha nossa, como eu estava enganado!


Depois de uns 4 km de um arremedo de estrada torturante, pensei: "Não é possível, isso aqui não é uma estrada, é um trilho pra carro de bois... devo ter entrado em alguma vicinal..."


Era pedra e buraco, buraco e pedra... ia pedir informação numa casinha, mas pelo jeito todo mundo que chegava lá fazia isso: o dono fixou uma placa no portão: "Serra do Corvo Branco, mais 3,5 km".


Dúvida eliminada, continuar em frente. 


Enfim, chegamos ao asfalto. A entrada da serra (e a serra inteira) é uma visão de tirar o fôlego.

http://www.urubici.sc.gov.br/turismo/item/detalhe/1343
Você mergulha por uma fenda escavada em 90 metros de altura de rocha e chega no primeiro "mirante".

Na verdade, não é bem um mirante, é mais um espaço adicional para os caminhões poderem manobrar para fazer as curvas, de tão fechadas que são, é impossível virar de uma vez só.



http://www.meusroteirosdeviagem.com/2012/06/serra-do-corvo-branco-urubici-estrada.html

É lá que tem uma grande placa explicando o nome da estrada, "as pessoas não conheciam o urubu-rei, e chamaram de corvo-branco"... Sei. 

Conversa de "doutor" sabido da capital. Não vi um único urubu-rei, mas vi um monte de aves que certamente eram um tipo de corvo, todos eles metade brancos e metade pretos... 


Mania que esse povo convencido da capital tem de achar que o povo do interior é burro... não viram o bicho e acham que sabem tudo.


A placa tinha apenas uns 20 adesivos de motogrupos e motociclistas que se aventuraram por lá. Procuro os adesivos dos WD±40 num bolso, procuro no outro e nada... 


Foi aí que eu lembrei que esqueci de colocar no bolso os adesivos que em casa eu tinha segurado na mão... ô, cabeça dentro desse capacete... esse capacete...


Para ter uma ideia do que é descer essa escarpa, tem este vídeo de um pessoal descendo a Serra do Corvo Branco de Falcon.




Para conhecer a Serra do Corvo Branco você tem que ir devagar, e em cada curva parar e olhar para trás, para os lados, para cima, para baixo...

No meio do caminho tem uma formação natural com blocos de pedra justapostos tão bem encaixados que, se não estivesse encravada no meio da rocha, poderia ser uma fortaleza inca.


Cortes talhados no morro ameaçando desabar sobre você, a ponto de você rodar na ponta dos pneus com medo que qualquer barulho acorde a montanha...


Imagem: Vista da estrada da Serra do Corvo Branco e Pico do Aiurê - 05/09/2010. By Ivan Cleitom Bini

A paisagem é das mais incríveis do planeta... montanhas e precipícios monumentais, o pico do Aiurê, uma agulha de pedra com metade do tamanho do Pão de Açúcar.

A diferença é que o Pão de Açúcar está tranquilo à beira-mar, enquanto o Aiurê se equilibra precariamente na beira de um precipício... 

É uma sensação avassaladora que nunca mais esquecerei.


E aí acabou a serra e começaram as dificuldades.


A SC-370 simplesmente não existe.


O que existe é uma praça de guerra entre a serra e Grão Pará:



Imagem: http://wp.clicrbs.com.br/diariodolitoralsul/2011/02/21/descaso-na-serra-do-corvo-branco/?topo=67,2,18,,,67

Essa foto foi tirada em 2011, mas podia ter sido ontem. Ou em 2006. Ou em 1955.

Se algum dia houve uma estrada de boi ali, ela foi arrancada por tratores que, inclusive, derrubaram vários postes. Há um trecho de quase 30 km em obras.


Foi isso aí que Jezebel e eu tivemos que atravessar para sair de lá. Ou atravessávamos, ou subíamos novamente a serra, o que implicava pernoitar em São Joaquim ou descer a Serra do Rio do Rastro à noite.


E foi com enorme satisfação (e cansaço) que atravessamos essas dezenas de quilômetros sem cair nem atolar (total e completamente). 


Saldo do trecho: botas totalmente cobertas de barro, calças cobertas de barro até os joelhos, jaqueta, camiseta, capacete, luvas, meias e só eu sei o que mais sujos de argila.


Bom, para dizer que não caímos, bem... 


Em determinado ponto, quando o pior parecia já ter acabado, Jezebel resolveu que ia deskansar um pouco e começou a se deitar, eu falei "guenta aí, Jezebel!!!", mas os pés escorregaram na lama, a teimosa se deitou, eu fiz um espacate (ui!) e acabei sentado espacatado sobre ela.

Para quem não sabe, espacate (ui!):


Chegamos à civilização umas 3 da tarde, uma localidade chamada Aiurê, antes de Grão Pará, e paramos por meia hora para descansar e recuperar as energias. Só eu, porque lá não tinha posto de gasolina.

Ficamos em um bar e lanches, estava saindo uma fornada de pastéis (nham nham!), ataquei um litro de Framboesa Água da Serra, refri de produção local, tão local, que não tem pra vender nem aqui perto de casa.

E ainda bati papo com os moradores, que ofereceram torresmos e cerveja (que eu teria bebido se não estivesse pilotando), quase que eu participo do torneio de sinuca. Viver é isso.

Já na BR-101, se você sobreviver ao congestionamento, a travessia da ponte de Laguna é outra experiência inesquecível, passei por ela bem ao cair da noite. 


Imagem: http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/diario-da-redacao/noticia/2014/01/voce-fotografo-tres-versoes-das-pontes-de-laguna-sul-do-estado-4389739.html


O gargalo dessa ponte é tão grande que a padoca onde parei em Tubarão tinha um monitor fixo na câmera de monitoramento de tráfego via internet... sinistro.

Depois de 12 horas em cima da moto, 50 reais em gasolina e mais uns petiscos, muita emoção e muita aventura, paisagens deslumbrantes, estávamos novamente em casa, prontos para a próxima.

Bem, não exatamente prontos. Vou precisar mandar lavar e lubrificar a Bél, e procurar parafusos para prender o para-lama dianteiro. 


A trepidação fez eles caírem fora. Nada que uns laça-gatos e um elástico não resolvessem provisoriamente.

Não fiz registros dessa aventura, não uso máquina fotográfica. 


Como no filme, as melhores imagens são aquelas das quais não tiramos fotos, você tem que estar ali por inteiro para vivenciar.


Vi muitos leopardos-das-neves ontem. 

Um abraço,


Jeff

PS: O adesivo WD±40 do meu capacete não está mais lá — ficou em algum lugar lá na Serra do Corvo Branco.  ;)

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